Descrição
Apresentação do livro
Vou aprender a ler pra ensinar meus camaradas*
No velório que celebrou – entre cantos e berimbaus – a passagem da escritora Tula Pilar, me tomou uma comoção já conhecida e uma ladainha me subiu à garganta, impossível de ser calada. O sentimento já havia me consumido em outros momentos, naqueles em que eu sentia um pedaço de mim (mim, corpo cravado na pele ou mim, corpo extenso em minha comunidade) desligar-se do emaranhado de conexões que se ligam através do que sou.
Eu precisei cantar as palavras que se comprometiam com a partilha de tudo o quanto a vida me entrega em sua abundância, inclusive a partilha da palavra que nos tem sido roubada há cinco séculos. O pensamento ocidental pinçou de toda a diversidade viva uma singular expressão possível da seiva e através de um mito – sustentado ao preço da guerra – empurrou-nos a crença de que esta expressão é neutra, é capaz de traduzir a todas as outras, o mito de que ela é superior, desenvolvida e universal.
Essa operação nos converteu em anormais.
Sim, o pensamento ocidental fundou a norma, a normatividade, a normatização, fundamentadas na invenção de que tudo que não é ele está equivocado, subdesenvolvido e anormal.
O racismo e o sexismo alimentam aí seu poder dilacerante mas as implicações são tantas que poderemos desdobrar consequências disto em todos os campos da vida: do modo de amar (que se não for monogâmico, heterossexual e cristão é errado) à construção da história oficial, do que pode ser considerado como belo até a validação ou não de narrativas oriundas de mundos invisibilizados, mas existentes.
Toda a literatura tem as mãos implicadas no saque colonial, essa ferida aberta que não deixam de cutucar e aumentar. Quando uma mulher negra, mãe, pobre e empregada doméstica se faz livre e arrebatadora do muro que a separa da palavra nascem Tulas Pilares para desalinhar alinhamentos perversos e provocar as imaginações cansadas do trabalho a dançar e sonhar ser mais do que a agonia faminta que nos maltrata dia a dia.
Eu aprendi a ler, aprendi a escrever e tenho aprendido com minhas camaradas, talvez ensinando também, talvez compartilhando espelhos em que se possam perceber na potência que somos, mesmo quando todas as normas dizem que não.
Assim nasceram ocupações de terra, panfletagens, manifestações, músicas, versos, amores, livros e, mais recentemente, oficinas de escrita que conduzi e que me ofertaram muito. Sou terrivelmente agradecida pelo encontro poderoso em que fabulamos ter a nossa palavra tanta relevância quanto as mais respeitadas.
Durante a pandemia eu ingressei como população flutuante de uma Coahb digital: uma vida em cada janela, cada um no seu quadrado e mesmo assim sofrendo de olhos dados a chorar, em comunhão, os dias difíceis de fome e morte.
Estes dias não terminaram mas somos resistência muito antes dos slogans e realmente brotamos flor, mesmo no asfalto, como diria o poeta de Itabira, mesmo no lixão, como diria o poeta da Vila Fundão. Nunca houve uma tragédia maior que a nossa necessidade de fazer poesia e de cantar, ainda que este canto fosse um lamento.
Esta antologia de crônicas foi parida em momentos onde abrimos nossa casa e nosso peito a desconhecidos que puderam se emocionar com as palavras de Conceição Evaristo, de Cidinha da Silva, de Ana Maria Gonçalves, Marilene Felinto, Paloma Franca Amorim, Clarice Lispector, Eliane Brum, Michel Yakini e até com as minhas.
Aqui, janelas e portas se abrem e nos deixam conhecer vizinhos e vizinhas, comunidades, memórias, salas com mobília feita de memória e a vulnerabilidade de um corpo no Pronto Socorro. Alguns relatos nascem de gente fervorosa, outros, de almas que possuem fé em deuses que não nomeamos. Como foi que outras pessoas atravessaram a pandemia? O que sentiam aqueles e aquelas que eu via apenas de minhas janelas, desconhecidos de meu cotidiano? Pessoas comuns, como eu, que vivi momentos de catarse e ansiedade, o que houve dentro delas nos lampejos de lúcida dor?
Algumas experiências têm silhuetas muito diferentes das que me atravessaram o corpo, outras me parecem conhecidas de mais perto. Há imagens de trens, de mares e cidades que meus olhos não alcançam – mundos sincrônicos e avizinhados, vivendo paralelos.
Está dividida em três partes, a primeira, Fique em Casa, relembra o recado repetido como mantra num país em que preservar-se da morte é privilégio (traduzido aqui como um direito seletivo que se realiza apenas para alguns). Mas estar em casa pressupõe ter uma casa, e essa morada – onde habitou a solidão por falta de contato ou os atritos pela convivência intensiva – origina narrativas distintas.
A segunda parte, De Passagem, compartilha os trânsitos e transes de quem tem no transporte público o palco de muitas horas de vida. Revela os trajetos físicos e mentais que muita gente fez enquanto se deslocava sem direito ao fique em casa e até mesmo saudades ou memórias vividas nessa transição entre lugares.
A terceira e última parte, Crônicas de Permanecer, conta um pouco do que sobrevive a todo solavanco e sustenta mesmo as espinhas dorsais mais vulnerabilizadas. Memórias que suportam o presente, histórias que compõe o núcleo duro onde somos centelha e magma, como a terra.
Quando a diversidade atinge as narrativas, o mundo se agranda. Nem a pobreza, nem a racialização, nem a escolarização parca ou pífia puderam nos impedir de fabular e narrar nossas histórias. Esta antologia é uma vizinhança imaterial e diversa, composta por gente do todos os cantos que, mesmo em meio ao tempo da peste se faziam perguntas e ousavam escrevê-las, que mesmo no caos tomavam um minuto de ar para contar o que viram seus olhos, estatelados diante da vida, ou ainda para recuperar memórias nutritivas de futuros possíveis.
Muito diferentes umas das outras, estas escritas são agora publicadas para que se faça carne o verbo escrever – ou que se faça livro, melhor dizendo.
Há, entre mundos, sábios e sábias que não escrevem ou mesmo não sabem ler. Os livros não encerram – nem de longe – todas as verdades, todas as histórias e não nos interessam as validações ou chancelas coloniais. Mas mesmo assim, decidir escrever a própria história, abrir-se a compartilhar a vida que sempre nos disseram ser insignificante é um desafio a que se lançam cada vez mais pessoas.
Pode ser uma sina, uma missão ou um jogo de corpo na capoeira: aprender a ler e ensinar as camaradas.
*Verso da música Yaya Massemba, de Roberto Mendes e Capinam
Apresentação de Helena Silvestre
Sobre a organizadora | Helena Silvestre
Cafuza nascida e criada nas aldeias e quilombos da região metropolitana de São Paulo, tendo Mauá – essa Macondo – como local oficial de seu nascimento, embora não se lembre muito bem.
Militante, é ativista das lutas pela libertação de povos, corpos e territórios submetidos à lógica do dinheiro que infesta nossas esquinas.
Feminista afroindígena, é editora da Revista Amazonas e parte do movimento Luta Popular.
Escreve, compõe, canta, dança, fuma e fala mais do que deve.
Às vezes, se aluga para sonhar.
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