Aproximei o meu rosto do prato e senti o cheiro do cuscuz quentinho.

Que felicidade eu tenho quando sinto o cheiro de cuscuz assim…. me faz lembrar das manhãs em que enchíamos o bucho, entre crianças felizes por correr soltas nas vielas e ruas de terra da favela do Macuco.

O cheiro do cuscuz preso nas tranças de minha avó, cantando em suas anedotas o que é ser nordestina, nordestinada e que essa marca é coisa que se leva a sério.

Na minha geladeira não há muitas coisas mas há o suficiente para viver e preservar-me de regulares exposições possivelmente fatais.

Na realidade, não sei se precisei algum dia de qualquer ostentação que paire por aí.

Quantas vezes Wesley me dizia que meu gostar de canjica eram memórias da fome?

Eu cresci comendo serralhas e taiobas, e não romantizo nem por um segundo o que foi a vida para minha mãe, fritando cebolas no óleo quente pra que misturássemos ao prato de arroz quando já havia acabado o feijão.

Seis crianças em 3 cômodos que cheiravam a tacos mofados na casa sem janelas.

Eu cresci comendo goiabas e abacates do pé, no lugar onde as balas das chacinas deixavam lençóis brancos no chão das encruzilhadas.

Cresci na fronteira invisível que separa a fome do desalento; apoiada no instinto que vasculha a moita atrás das ora-pro-nobis, porque a democracia dos terrenos baldios era mais horizontal que a de sustentáveis ideologias, já que alcançavam também a quem não alcança o discurso.

Esses dias tenho pensado muito no livro que escrevi sobre a fome. Eu chorei tantas lágrimas escrevendo aquilo, relembrando em mim cada memória da fome, que acho que preparei o meu espirito, lembrando-o de que entre nós esse sempre foi um genocídio permanente.

O carro dos ovos me trouxe de volta dessa memória de cuscuz.

O carro dos ovos agora é um ponteiro nesse relógio de dias parados e subterraneamente frenéticos.

Há quem tenha garantido o direito de estar em casa e é preciso fazer valer esse direito agora, mas há quem não tenha nem esse direito garantido e caminhe exposto pelo campo minado.

O carro dos ovos e os escapamentos explodindo violações engolidas denunciam que há milhões considerados descartáveis neste lugar.

Minha avó dizia ter mais medo da fome do que de tiro.

A única coisa em que eu tenho pensado — além de todas as aulas, trabalho remoto, ego, whatzsap, cândida, álcool ou telejornal — é em comida.

Eu tenho clamado aos quatro cantos da terra por comida.

Para que aqueles que possuem, possam dividir.

Para que a velocidade da erosão que a fome causa não seja maior que a possibilidade de uma refeição.

Arte: Coletiva Subversivx

Corremos, com a fome atrás de nós, impelidos pela autopreservação da espécie e horrorizados com a voracidade desta boca de metal mastigando sonhos enlutados.

De repente passo dias orçando cestas básicas e repetindo um mantra familiar: “o que for mais barato e o que renda mais”.

Nada é igual, nunca, nem os dedos das mãos e nem a fome de cada dia.

Não procuro comparações.

O que liga as coisas não é que sejam iguais, mas sim que são completamente diferentes umas das outras, sendo no entanto, manifestação de uma mesma engenharia vital.

A fome em meio à violência dos anos 90 — que vivi criança tentando roubar danones — e a fome que agora mostra suas garras e que eu não sei como se dará, são diferentes.

Como tudo é diferente.

Mas estão ligadas por serem manifestação da mesma destruição e contraditoriamente, da mesma ânsia por viver, da mesma urgência de vida ameaçada quando dissipado o véu de rivotril.

Outra vez já vejo livros prontos, a analisar a nossa fome sob a lente marxista mais rigorosa e outra vez escuto o coro de gritos e lamentações chegando das caldeiras onde se cozinha a morte e onde não se pode ler artigos rigorosos.

No tempo, homens buscando influenciar ou bloquear movimentações femininas tentam reproduzir o que já está falido, aos olhos do mundo inteiro.

É que precisam de quem saiba o que é a fome; precisam nos dominar para dar vida às suas análises que, efetivamente, não movem nada.

Essa é uma das diferenças deste tempo:

Já está mais do que discutido que o trabalho invisível de cuidados — que também pode ser dito como trabalho reprodutivo — suporta o peso de defender a vida.

A quem não pôde entender, basta que olhe através dessa lupa pandêmica: Estamos nós, enlouquecidas de trabalho, tentando sustentar e nutrir qualquer alma que esteja sob a ameaça da fome.

A necessidade de apontar uma estratégia épica, de roteiro planificado numa dada direção, com divisão em fases e com etapas que progressivamente cheguem a um clímax, onde o herói se oferece aos braços da história, é parte de uma gramática organizativa patriarcal, um modo patriarcal de produzir política mesmo quando mobilizada sob conteúdos radicais ou críticos dentro dessa forma.

Essa gramática está confrontada pela gramática feminista de organização territorial, uma gramática que funciona tecendo raízes, subterraneamente, sem grandes lideranças aparentes e funcionando por critérios que se ancoram na possibilidade de muitos corpos comuns agindo solidariamente, estabelecendo e criando infra-redes-estruturais de sustentação que apontem a autonomia de corpos e territórios e o exercício direto do poder, impossível de representar.

A terra e os territórios estão no centro da disputa entre essas duas linhas de resistência.

A luta pela terra, a ampliação de comuns ainda que pela desobediência civil são e serão centrais.

O cheiro do cuscuz acompanha o cheiro do café… eu poderia tentar por 500 anos sem entender, senão tivesse sentido isso tocar um corpo — tenso pela miséria — que um dia pôde suspirar ativado por tal perfume.

Não há narrativa que não possua continuidade material. No princípio era a palavra, desdobrando-se em vida.

Qual o desdobramento vital de seu discurso?

É preciso adiar o fim do mundo.

É preciso acelerar o fim da opressão.


Helena Silvestre

Ativista nas periferias, Feminista Favelada, Escritora, Educadora na Escola Feminista Abya Yala e Editora da Revista Amazonas


Publicado originalmente em Ensaio viral — a pandemia da fome

Arte em destaque: Amanda Martínez Elvir

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